41. Sobre Pérolas e Porcos

"Não deis aos cães o que é santo, nem lanceis ante os porcos as vossas pérolas" (Mateus 7:6). Dada a ênfase, nos versículos precedentes, à compaixão para com as faltas dos outros, a linguagem do Senhor aqui pode parecer um tanto surpreendente. Não é como se Jesus nunca usasse fortes metáforas para descrever a atitude espiritual de certas pessoas. Ele se referiu a Herodes Antipas como "essa raposa" (Lucas 13:32) e aos fariseus como "serpentes, raça de víboras" (Mateus 23:33). Mas esta passagem difere. Nenhum grupo específico de homens está sendo visado. "Cães" e "porcos" não se referem aos gentios ou a certa classe de pecadores extraordinariamente repreensível. Eles são simplesmente figuras nas proverbiais afirmações, nos moldes de 2 Pedro 2:22. Ambos os provérbios ilustram a futilidade de tentar oferecer algo de grande valor a alguém incapaz de apreciá-lo. "O que é santo refere-se aos sacrifícios do Velho Testamento, que só os sacerdotes podiam comer (Êxodo 29:23; Levítico 2:3). O significado especial deste alimento sagrado seria totalmente perdido num cão vadio (não os cães de estimação de Mateus 15:26-27), que simplesmente o engoliriam sem saboreá-lo mais do que se fosse um pedaço de lixo podre. De maneira similar, não adianta tentar ensinar aos suínos o valor especial das pérolas, que qualquer porco que se preze alegremente pisotearia, para correr a comer a mais repulsiva lavagem. Nenhuma gratidão por tal generosidade deveria ser esperada dessas partes. Sua resposta pode ser mais do que indiferente; pode ser violenta.

Como estes provérbios se ajustam ao contexto das palavras anteriores de Jesus sobre o julgamento severo? Eles provêm uma ponderação importante. Mesmo que homens falíveis, pecadores, estejam mal preparados para ter parte no severo julgamento de seus pares, não se espera deles, portanto, que olhem os homens com ingenuidade. Ao enviar os doze a ensinar, Jesus advertiu: "Eis que eu vos envio como ovelhas para o meio de lobos; sede, portanto, prudentes como as serpentes e símplices como as pombas" (Mateus 10:16). A precaução do Senhor não era cínica, porém prudente. Ele quer que seus discípulos sejam inteiramente inofensivos em seu relacionamento com outros, mas ao mesmo tempo que reconheçam que nem todos os homens têm fé e que alguns serão instigados à animosidade pelo evangelho.

Que aplicação o Senhor pretende que façamos destes provérbios que quase parecem estar fora de seu contexto? Guelich sente que estas são palavras de advertência aos discípulos contra a apostasia e conseqüente perda do que é santo e precioso (Sermon On The Mount, pág. 355-356). Isto parece improvável, desde que são os próprios discípulos que estão sendo exortados a não oferecerem coisas santas e preciosas aos desinteressados. É muito mais provável que Jesus esteja advertindo seus seguidores a não forçarem o evangelho nos ouvidos desinteressados e indiferentes. Suas palavras não pretendem ser desdenhosas ou depreciativas e não se aplicam aos descrentes como uma classe, mas àqueles cujo espírito torna-os incapazes de entender o evangelho (Romanos 8:7; 1 Coríntios 2:14). Mais tarde, ele dá quase o mesmo conselho aos Doze, instando com eles para que preguem aos "dignos" mas para que não percam o seu tempo com aqueles que não os ouvirão (Mateus 10:11-14). Triste como é, há algumas pessoas que, não importa quão pacientemente ensinadas, simplesmente não têm "ouvidos para ouvir" (11:15; 13:13-14).

Há uma importante lição para aprendermos em tudo isto. Podemos ter um especial desejo de ensinar e converter a Cristo uma certa pessoa ou grupo de pessoas. Pode ser um ente querido ou um amigo especial, ou mesmo uma classe especial ou nação de pessoas. Não há nada de errado em tal profundo desejo pela salvação de outros, mas não deve cegar-nos quanto ao seu desinteresse e indiferença e o desperdício de esforço que poderia ser melhor empregado em corações mais receptivos. A paciência é boa, mas não devemos continuar sempre a tentar tirar água de um poço evidentemente seco. Outros corações estão almejando ouvir. Estes são aqueles que necessitamos estar à procura. É uma coisa de partir o coração ser diariamente testemunha do estado perdido de seus próprios filhos, pais, esposa, esposo, amigos. Que vamos fazer quando aqueles que amamos são tão desinteressados? O Senhor está nos dizendo, "Saia e ensine os filhos de alguma outra pessoa, a mãe e o pai de alguma outra pessoa." Paulo tinha esta dura experiência. Ele amava sua nação com paixão absoluta (Romanos 9:1-3), mas ela não tinha "ouvidos para ouvir". Que teve ele que fazer? Ainda orando por seus perdidos irmãos na carne (Romanos 10:1), ele se voltou para investir suas energias naqueles cujos corações eram mais receptivos, os gentios (Atos 13:46-48; 18:6). Eles não eram "seu tipo de pessoas". Eles eram moralmente corruptos, degradados, idólatras; mas eles estavam querendo ouvir e aprender. Quando aqueles em nossa própria comunidade, nosso próprio povo, não respondem positivamente ao evangelho, precisamos procurar outras comunidades, outro povo, e pregar a eles. O evangelho e o tempo são muito preciosos para serem desperdiçados com aqueles que não se importam. O mesmo podia ser dito de pregadores que trabalham ano após ano com igrejas que não mostram nenhum interesse em crescer em Cristo ou cumprir sua grande obra. Estes pregadores precisam deixar estas rotinas sem esperança e juntar seu trabalho com discípulos que, ainda que atrasados agora, estão abertos e querendo aprender e crescer.


42. Um Reino para os que Pedem

"Pedi e vos será dado . . ." (Mateus 7:7). Há algo poderosamente confortante neste trecho final (7:7-12) do corpo central do grande Sermão de Nosso Senhor, mas está sujeito a sérios equívocos. Este convite de Jesus é tão memorável por si mesmo, tão facilmente guardado no coração, como alguma grandiosa certeza que abrange tudo, que tem sido freqüentemente visto como a lâmpada de Aladim de cada desejo humano, a garantia de que se orarmos por ele, Deus concederá. Não é este o caso, e somente tirando-se esta promessa de seu contexto poderia tal ponto de vista ser sustentado.

Por que Jesus encerra sua discussão da justiça do reino com estas palavras de forte encorajamento? Se Mateus 7:1-5 é dirigido àqueles inclinados a se tornarem fariseus do reino, este trecho é dirigido àquele bem maior número que poderia desesperar-se diante das exigências de amor. Em sua fraqueza e indignidade, eles vêem os elevados padrões do reino como inalcançáveis. O Senhor agora torna claro que é justamente a tais corações, que almejam uma justiça por uma desesperada necessidade, que o reino do céu se entrega. Ele não é um reino para os que merecem, mas para os que desejam, um reino para os que pedem.

"Pois todo o que pede recebe . . ." (Mateus 7:8). Quem quer que seja a pessoa mandada pedir e qualquer que seja a bênção que ela procura, não pode haver dúvida, pelas palavras de Jesus, que Deus a concederá. Há absoluta certeza disto. Seis vezes, em dois versículos, Jesus diz isso. Mas aplica-se esta promessa, sem condição, a todos, e não há limites sobre o que pode ser pedido?

Pelo contexto geral do Sermão, é evidente que o "todo" de Jesus não pode ser universal. Ele já advertiu que nem o hipócrita interesseiro, nem o ritualista insensato receberão qualquer recompensa do Pai (6:1,7). Com a mesma certeza, está excluído o homem dividido, cujo pedir, buscar e bater são esporádicos, incertos e desanimados (6:22-24; Tiago 1:5-8). O "todo" desta promessa é claramente referente ao homem de espírito humilde e de coração puro das bem-aventuranças (5:3-12). Há uma passagem similar em Jeremias: "Então me invocareis . . . e eu vos ouvirei. Buscar-me-eis, e me achareis, quando me buscardes de todo o vosso coração" (29:12-13).

O objeto do pedir, do buscar e do bater é deixado sem ser dito em nosso texto. Significa isto que qualquer pedido, que é verdadeira e sinceramente feito pelo cidadão do reino, será concedido? Não há limites aqui? Ajudar-nos-á a entender o verdadeiro ponto desta passagem se lembrarmos a preocupação central do Sermão. Como um contínuo e invariável tema, a exposição de Jesus sobre a natureza e máximo valor do reino de Deus está sendo interligada através de todos os versículos de Mateus 5 e 6 e, aqui nesta passagem, atinge o grande final. O reino descrito e exaltado é agora oferecido a cada coração humilde e contrito. Não é simplesmente qualquer pedido que o Senhor convida seus ouvintes a fazerem com confiança, mas um pedido pelas bênçãos do reino do céu. Ainda que a oração seja tratada no Sermão, não é meramente tratada para ensinar sobre a oração em si, mas para ilustrar a vida totalmente consciente de Deus e a importância de santificar Deus e sua vontade acima de tudo (6:5-15). Apoio para este entendimento é encontrado no relato paralelo de Lucas do mesmo ensinamento, onde "o Espírito Santo" (11:13) substitui as "boas coisas" de Mateus que o Pai dará "aos que lhe pedirem" (7:11). Deus sabe que temos carência das necessidades físicas da vida (6:32) e nos encoraja a orar por elas (6:11), mas estas não são os verdadeiros tesouros que formam a idéia principal deste sermão. As "boas coisas" deste texto são espirituais.

"Ou qual dentre vós é o homem que, se porventura o filho lhe pedir pão, lhe dará pedra? . . . quanto mais vosso Pai que está nos céus dará boas cousas aos que lhe pedirem?" (Mateus 7:9,11). A base de nossa confiança em procurar o reino do céu repousa seguramente no desejo e capacidade de Deus de fazer "boas dádivas" a seus filhos. Algumas de nossas orações podem não receber resposta positiva porque nosso Pai, em sua graça e sabedoria, sabe que elas não serão "boas dádivas". Mas nosso desejo pelo "pão do céu" será atendido. A "justiça, paz e alegria" do reino de Deus (Romanos 14:17) são "boas" sem qualificação, e é a vontade do Pai dê-las a cada um que as procura de todo o coração. E, quanto aos nossos outros desejos, há uma grande certeza em saber se, em nossa inocência e sinceridade do espírito ("porque não sabemos orar como convém", Romanos 8:26), pedirmos pedra em vez de pão, nosso Pai não o concederá. O pensamento de ser capaz de pedir a Deus qualquer coisa com absoluta certeza de recebê-la seria um pensamento assustador. Alex Motyer o exprime bem: "Se fosse o caso que, seja o que quer que peçamos, Deus fosse obrigado a conceder, eu seria o primeiro a não orar mais, porque eu não teria confiança suficiente em minha própria sabedoria para pedir a Deus qualquer coisa . . ." (conforme citado por John R. W. Stott em Christian Counterculture, p. 187). Há poucos de nós que não tenham vivido o bastante para agradecer ao nosso Pai celestial por orações que ficaram sem resposta.


43. A Regra de Amor

"Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles; porque esta é a lei, e os profetas". É conveniente que prestemos alguma atenção especial a Mateus 7:12, porque ele é um dos versículos mais conhecidos da Bíblia e, bastante triste, muito pouco praticado por aqueles que o conhecem.

A "regra de amor" veio a ser identificada de um modo especial com Jesus, mas o Senhor aqui a descreve como a verdadeira essência da "lei e dos profetas" (note Romanos 13:9-10). Memorável como é, esta passagem não abre nenhum novo assunto ético, mas é simplesmente uma reafirmação de Levítico 19:18: ". . . amarás a teu próximo como a ti mesmo." Mas, se o mandamento para fazer aos outros o que quisermos que eles nos façam não é excepcional para Jesus, há certamente uma intensidade especial que ele lhe dá, pelo exemplo forte de seu próprio amor: "Novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; assim como eu vos amei. . . ." (João 13:34).

Talvez a primeira coisa que precisa ser notada, sobre a "regra de amor", é que ela nos compele a tratar os outros começando por nós mesmos. Não devemos determinar nosso tratamento aos outros olhando para eles e perguntando o que eles merecem, mas iniciando conosco mesmo e perguntando o que nós quereríamos e necessitaríamos. Os filhos de Deus devem usar o seu entendimento de interesse próprio inato, para aprender como tratar os outros de um modo gracioso e amável. Como, precisamos perguntar, desejaríamos ser tratados se estivéssemos nas mesmas circunstâncias que agora enfrentam nosso companheiro? Que bem esta simples regra de conduta penetra nossos subterfúgios para nos justificarmos! Subitamente, para o coração humilde, o caminho se torna notavelmente claro.

Mas se é assim, por que é que mais pessoas não praticam este princípio que haveria de, tão obviamente, revolucionar o mundo? Basicamente, porque muitas pessoas são egoístas e egocêntricas. Todos os esforços para alterar os homens, educando-os pela "regra de amor", têm falhado porque os objetos destes esforços repressores continuam a ser essencialmente egoístas. Somente quando aquela velha tendência a servir-se a si próprio for interrompida é que os homens se libertarão para tratar os outros da maneira como gostariam de ser tratados.

Como então os homens vão ser liberados de seu básico egoísmo e ficarem livres para ver os outros como eles vêem a si próprios? Olhando primeiro para Deus. Nossa fascinação por nós próprios só pode terminar quando ficarmos fascinados por Deus. Não é o maior mandamento de todos "Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração . . ."? (Mateus 22:36-39). Quando um amor absoluto por Deus nos tirar de um absoluto amor próprio, libertar-nos-emos para amar os outros como nos amamos a nós mesmos. Até que isso aconteça, o tipo de amor próprio demasiado, que guia muitos homens, impossibilitará que jamais sejamos capazes de ver os interesses dos outros do mesmo modo que vemos os nossos próprios. O que isto diz é que somente Deus pode livrar-nos de nós mesmos e capacitar-nos a amar os outros de modo sem egoísmo. "Nós amamos porque ele nos amou primeiro" (1 João 4:19). Esta é a razão precisa por que nenhum homem que não olhou para a face de um Deus santo e amoroso, e caiu de joelhos em humilde gratidão, pode jamais praticar a regra de amor.

Este simples fato, muito provavelmente, explica porquê Jesus levanta de novo o assunto do amor ao próximo no contexto de Mateus 7. Ele pode ajudar-nos a entender o sentido do "pois" de nosso texto (7:12). Lloyd-Jones sente que Mateus 7:12 é uma volta ao assunto do julgar aos outros, e isto podia ser, mas é difícil tratar 7:6-11 como nada mais do que um parêntese. Parece mais provável que o Senhor está baseando sua instrução para o tratamento dos outros no gracioso tratamento que Deus dá a seus filhos (7:9-11). A misericórdia de nosso Pai e a generosidade para conosco não foi o que merecemos, mas o que desesperadamente necessitamos. Certamente, então, aqueles que têm recebido tal graça são exortados a tratar os outros, não na base do que eles merecem, mas do que eles necessitam. Então, Jesus fecha o núcleo de seu Sermão como ele o começou: com um apelo por uma verdadeira justiça que se revela num amor sem egoísmo pelos homens, um amor que repousa solidamente no gracioso amor de Deus por nós.


44. O Desafio a Escolher

O corpo do grande discurso de nosso Senhor na Montanha, sem erro, foi concluído em Mateus 7:12. A natureza radical e não convencional do Reino, seus cidadãos e sua justiça foram clara e poderosamente traçados (5:3-7:12). Os demais versículos do Sermão (7:13-27) contêm o apelo de Jesus pelo compromisso de seus ouvintes.

Este notável discurso espiritual, que dá definição a toda verdadeira pregação do evangelho, não foi pretentido meramente para informar, mas para persuadir. O Sermão da Montanha toca nossa vontade, bem como nosso entendimento. É um chamado a escolha radical. E o Grande Pregador não pretende que escapemos dele ou de sua mensagem. Ele está dizendo, com efeito: "Meu Sermão está terminado. Agora você tem que decidir o que você fará a respeito dele. Pondere cuidadosamente. Escolha sabiamente. Vida e morte estão no rumo que você tomar."

O que é óbvio em tudo isto é o fato que, não obstante todo o poder de Deus, os homens podem rejeitar sua vontade. Seu longo e árduo trabalho redentor resulta, finalmente, não em um decreto irresistível (Atos 7:51; Hebreus 10:29); mas em um convite solene (Mateus 11:28-30). O homem não é um robô. Sua vontade, por determinação de Deus, é inviolável. Jesus pode suplicar, mas não pode compelir. Assim, ele nos ensina pacientemente e, então, insistentemente solicita.

Ao fazer seu apelo de encerramento, o Senhor fala só de duas alternativas: duas portas, dois tipos de fruto, dois fundamentos. A escolha pode ser difícil, porém não é complexa. Temos que decidir entre o caminho da submissão e da confiança e o caminho da rejeição e da rebelião. Ele insiste com seus ouvintes para que escolham entre estas alternativas, considerando não somente suas exigências, mas também suas conseqüências. Aonde esta estrada me levará? Que tipo de fruto esta árvore produzirá? Resistirá esta casa à mais violenta tempestade?

As exortações deste trecho final podem ser divididas em três unidades (7:13-14; 15-23; 24-27). Entre duas admoestações a escolher sabiamente, está inserido um aviso sobre o perigo da sábia escolha apresentada por falsos mestres.

O Caminho Estreito

"Entrai pela porta estreita (larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz para a perdição e são muitos os que entram por ela), porque estreita é a porta e apertado o caminho que conduz para a vida, e são poucos os que acertam com ela" (Mateus 7:13-14). Aqui Jesus abertamente insiste com seus ouvintes para que escolham o caminho que é duro e apertado e rejeitem um trajeto mais fácil e mais confortável. Ele até deixa claro que a estrada à frente é tão inexoravelmente exigente quanto a porta pela qual nela se entra, e mais do que isso, pode ser, algumas vezes, um caminho solitário, uma vez que muitos homens não o acharão a seu gosto. O convite ao reino feito pelo Senhor, notavelmente honesto, torna excessivamente repugnantes os apelos carnais e as promessas açucaradas de alguns pregadores modernos.

Não há nada de surpreendente neste convite. É um convite a entrar num reino cuja feição mais saliente tem sido a estreiteza de sua visão e a singeleza de seu compromisso (5:48; 6:19-24,33). A porta estreita é a soberana autoridade do Senhor, e o caminho apertado a obediente submissão a sua vontade. Aqueles que entram não se encontrarão mais fazendo a coisa esperada, tradicional, óbvia. Seguindo o Filho de Deus, suas vidas serão tão diferentes como seus destinos.

Obviamente, há muitas coisas que aqueles que escolhem a estrada estreita do reino têm que deixar para trás. Estaremos abandonando a multidão despreocupada que nunca tem que perguntar se o que está fazendo é agradável a Deus. O que é mais importante, estaremos nos desfazendo de nossa velha personalidade, com seu modo arrogante, teimoso e egoísta e entregando a mente e o pensamento a um Soberano mais sábio e mais benevolente (Mateus 16:24-25; 2 Coríntios 10:4-5). Somente deste modo chegaremos a ser mansos e misericordiosos, pobres de espírito e puros de coração, capazes de amar nossos inimigos e orar por aqueles que nos perseguem.

Mas se o caminho estreito do reino constringe o espírito obstinado e a mente voltada para si mesmo, ele não estreita o amor (Filipenses 1:9; Efésios 3:17-19); não constringe a paz (Filipenses 4:7); não seca a alegria (1 Pedro 1:8); não espreme a misericórdia (Efésios 2:4); não esmaga a bondade (2 Coríntios 9:8); não estrangula a esperança (Romanos 15:13). Tudo isto abunda na estrada estreita. A única coisa que a porta estreita arranca de nós é aquela impiedade que nos envenena e destrói. Somente o homem que ainda ama essa impiedade se sentirá oprimido e sufocado na estrada do Rei. O pecado é o ladrão que veio "roubar, matar e destruir", mas o "Bom Pastor" veio para que os homens tenham vida, e tenham-na abundantemente (João 10:10).


45. Buracos na Estrada Estreita

"Acautelai-vos dos falsos profetas que se vos apresentam disfarçados em ovelhas, mas por dentro são lobos roubadores" (Mateus 7:15). Apenas uma segunda vez, no Sermão, Jesus inicia suas palavras com um sóbrio "acautelai-vos" (grego proskete). A primeira aborda o perigo de dentro: hipocrisia (6:1). Ele agora fala do perigo de fora: os falsos mestres. Há algumas pressuposições naturais, que ficam por trás da insistente advertência do Senhor (John R. W. Stott, Christian Counter-Culture, pág. 197).

A primeira é que os falsos profetas não eram só uma possibilidade teórica, mas uma palpável e ameaçadora realidade. O Filho de Deus está nos dizendo que o reino do céu tem que ser procurado em um mundo onde mentiras e enganos a seu respeito abundarão. Não há nada de novo nisto. O Velho Testamento está repleto de advertências sobre falsos profetas (Deuteronômio 13:1-3; 18:20-22; Jeremias 23:13-32; 27:9-10; 29:8-9; Ezequiel 13:1-23; 22:28; Miquéias 3:11; Sofonias 3:4). Jesus, na última semana antes de sua morte, soará um alarme final sobre o futuro aparecimento dos pseudo-profetas e pseudo-cristãos (Mateus 24:5,11,24) e as epístolas do Novo Testamento revelam que o mundo dos apóstolos estava cheio deles (Atos 20:28-29; 2 Coríntios 11:1-4,13-15; Gálatas 1:6-9; Colossenses 2:8,16-19; 2 Tessalonicenses 2:8-12; 1 Timóteo 1:19-20; 4:1-2; 2 Timóteo 2:16-17; 4:3-4; Tito 1:10-11; 2 Pedro 2:1-2; 1 João 2:18-23; 4:1-3; 2 João 9-11; Judas 3-4; Apocalipse 2:15,20-24).

É evidente, pelo Novo Testamento, que nunca houve um tempo quando os cristãos não estivessem empenhados em controvérsia com alguma forma de falso evangelho. Aqueles que querem servir o Senhor, mas serem livres de qualquer preocupação opressiva com os falsos mestres, estão simplesmente esperando pelo impossível. Ninguém vai firmar-se seguramente ao caminho estreito sem ter alguns difíceis encontros com pseudo-discípulos que tentam subverter sua fé. Há um número de cristãos que ainda se agarram ao mito de que houve um tempo idílico na Historia do povo de Deus, quando o falso ensinamento era desconhecido e a paz e a unidade reinavam supremas. Pela segurança de nossa própria fé, precisamos abandonar essa ilusão e perceber que "através de muitas tribulações, nos importa entrar no reino de Deus" (Atos 14:22) e que algumas dessas tribulações virão de nossos próprios irmãos, que falarão "cousas pervertidas, para arrastar os discípulos atrás deles" (Atos 20:30). Nosso Salvador nos deu esta advertência desde o início. A maior ameaça contra os que estão sinceramente procurando entrar pela porta estreita é aquele grupo de enganadores que parece estar sempre rondando, quando assuntos de vida e de morte estão sendo deliberados. Estes falsos discípulos são mestres em tornar obscuro o que é eminentemente óbvio: a diferença entre a vontade de Deus e a dos homens, a distinção entre o caminho largo e o estreito.

Mas quem são esses falsos profetas de quem Jesus fala? Eles parecem ser não somente do futuro, mas do presente, professores que estavam de pé até então para impedir a entrada das almas sinceras no reino de Deus. Pensamos, quase imediatamente, nos escribas e fariseus, cujas perversões e hipocrisia foram uma preocupação dominante deste grande Sermão. É verdade que eles não eram discípulos de Jesus, mas certamente reivindicavam serem as verdadeiras "ovelhas" da pastagem de Deus. Em sua última e acusadora censura a estes hipócritas, o Senhor os acusou de fecharem "o reino dos céus diante dos homens", nem entrando, nem deixando ninguém mais fazê-lo (Mateus 23:13). Ele os chamou guias cegos de cegos (15:14) e advertiu seus discípulos para que ficassem longe do seu ensinamento (16:6-12). A advertência de Jesus, certamente, não é limitada à aplicação aos fariseus e os da sua laia, mas começa aí e avança para abranger todos aqueles que pervertem o evangelho e obscurecem a porta estreita.

A segunda pressuposição da advertência de nosso Salvador sobre os "falsos profetas" é que há um padrão objetivo pelo qual aqueles que chegam proclamando falar a vontade de Deus podem ser julgados verdadeiros ou falsos. A mesma pressuposição guiou o ensinamento de Moisés, quando advertiu que, mesmo aqueles falsos profetas que lidavam com sinais aparentes e maravilhas, deveriam ser rotulados de enganadores quando exortaram Israel a desobedecer à vontade já revelada de Deus (Deuteronômio 13:1-4). Os falsos profetas eram aqueles que falavam das "visões do seu coração, não o que vem da boca do Senhor" (Jeremias 23:16). Jesus, como Moisés, não é sincretista, juntando doutrinas radicalmente conflitantes e chamando-as igualmente verdadeiras. Ele já identificou o falso mestre em seu Sermão como sendo qualquer um que quebre o menor mandamento de seu Pai e ensine os outros a fazerem o mesmo (Mateus 5:19). O espírito existencial destes tempos faz com que os homens se afastem dos absolutos. "A verdade", para eles, é totalmente uma questão de gosto. Mas o espírito do Grande Mestre é inflexivelmente exclusivo. Ele somente, ele diz, é a revelação da Verdade e ninguém pode encontrar Deus separado dele (João 1:18; 14:6). A vontade de seu Pai (Mateus 7:21), suas próprias palavras (7:24), tem que ser o padrão do julgamento. Mestres de nosso ou de qualquer outro tempo, que dizem que "há muitos caminhos para se chegar a Deus" não foram mandados pelo seu Filho Unigênito. Eles são falsos. Eles são enganadores.


46. Olhando sob a Pele do Carneiro

Uma terceira pressuposição, por trás da advertência de Jesus contra os falsos mestres, é que eles são perigosos. Estes pseudo-profetas não são só indivíduos momentaneamente desencaminhados. Eles são corruptos até o âmago, falsos na própria essência de suas vidas espirituais (". . . por dentro são lobos roubadores"). Como o príncipe bestial que os domina (1 Pedro 5:8), seu propósito não é servir, mas devorar. Eles não nutrem seus seguidores, eles os consomem (Atos 20:29-30; 2 Pedro 2:3).

Mas o perigo real destes falsos profetas está em seu habilidoso engano. Eles chegam vestidos de ovelhas. Seu verdadeiro caráter e intenção estão sempre ocultos por uma aparência de piedade. Eles se fazem passar por discípulos. O ignorante e o desprevenido que tratam descuidadamente com superficialidades estão destinados a serem enganados por estes espertalhões que, longe de serem abertamente carnais e repulsivos, são, como Paulo os descreve, religiosamente atraentes (2 Coríntios 11:13), experientes na vida (Colossenses 2:8) e encantadores (Romanos 16:17-18). Eles são justamente o tipo de pessoa que levaria os observadores superficiais a perguntar como estes professores bons, sinceros e instruídos poderiam estar errados. Se quisermos andar em segurança no caminho estreito, não é suficiente sermos sinceros; temos que ser prudentes, também (Mateus 10:16).

"Pelos seus frutos os conhecereis . . ." (Mateus 7:16). A advertência do Senhor sobre os falsos profetas com certeza iria levar um arrepio de medo através dos corações dos discípulos. No mundo, o reino de Deus tinha muitos inimigos. Isto não era novidade. Mas havia uma ameaça que vinha de dentro, de seus próximos e íntimos camaradas! Como poderiam eles saber em quem confiar? Como distinguir o falso do verdadeiro?

O medo dos pseudo-discípulos tem levado alguns cristãos à paranóia. Eles percebem falsos mestres atrás de cada moita e estão constantemente numa disposição de ânimo interrogativo e investigativo. Mas não há nada nas palavras de Jesus que deveria tornar seus discípulos num temperamento suspeito, até mesmo cético, com todos os seus irmãos. É ao nível do fruto que estes julgamentos têm que ser feitos e não antes que o broto surja fora da terra. Como diz Bonhoeffer: "Não há necessidade de ir espiar dentro dos corações dos outros. Tudo o que necessitamos fazer é esperar até que a árvore produza fruto, e não teremos que esperar muito tempo" (O Custo do Discipulado, página 146).

Por esta razão não precisamos hesitar em ser justos com os professores que atravessam nosso caminho, dando-lhes o benefício da dúvida até que as circunstâncias estejam claras. Isto não nos tornará confiantemente simples ou nos tornará em carne fresca para cada enganador. O fruto revela a árvore no tempo certo. E parece melhor ser momentaneamente enganado por um lobo ocasional do que estar constante e impetuosamente tentando arrancar a lã de cada uma das ovelhas do senhor.

Ainda, julgamentos terão que ser feitos e advertências emitidas quando chega a colheita do fruto dos falsos mestres. Ainda que a proibição do Senhor de julgar os outros (Mateus 7:1) elimine um julgamento duro e injusto, ela certamente não proibe a examinação dos professores e dos assim chamados profetas. Os espíritos têm que ser provados para determinar "se procedem de Deus" (1 João 4:1). O conselho do Senhor aqui não é o mesmo que na Parábola do Joio (Mateus 13:36-43). Ele não tem nada a ver com fazer o julgamento divino final dos homens e portanto não precisa ser reservado para Deus e a vida futura. Jesus está simplesmente dando conselho prudente sobre como os falsos mestres podem ser reconhecidos e evitados. Os eventos do dia-a-dia os revelarão. Todos os disfarces cairão, finalmente. As pretensões não podem ser mantidas para sempre. As árvores darão fruto.

Mas qual será a natureza do engano destes profetas e qual é o fruto pelo qual eles têm que ser provados?

Os falsos profetas da era do Velho Testamento eram homens dos quais todos falavam bem (Lucas 6:26). Sua pregação era sempre confortante, mesmo quando as circunstâncias exigiam advertência e repreensão (Jeremias 6:14). Eles profetizavam mentiras (Jeremias 27:9-10), mas eram sempre mentiras atraentes que serviam a seus próprios propósitos egoístas (Miquéias 3:11).

A advertência presente de Jesus revela que as coisas não devem ser diferentes na era do evangelho. Os falsos profetas haveriam de falar mentiras intencionais (1 Timóteo 4:2), de modo a atender aos fregueses que buscam enganos confortantes (2 Timóteo 4:3-4). Descuidados das reais necessidades do povo de Deus, estes professores lhes diriam o que eles queriam ouvir. Tais pregadores provavelmente farão pouca ou nenhuma menção à justiça de Deus, o horror ao pecado, a necessidade do verdadeiro arrependimento, ou ao inferno (Atos 24:25). Eles não declararão "todo o desígnio de Deus" (Atos 20:27). Não haverá "caminho apertado" em sua pregação.

Mas qual é o fruto destas "árvores corruptas"? O próprio fato de que eles são chamados "falsos profetas" mostra que o fruto de suas bocas é corrupto, falso. Seu ensinamento não passará no exame da palavra de Deus (Atos 17:11). Mas desde que a boca fala "do que está cheio o coração" (Mateus 12:34), o mal na nascente vai revelar-se tanto no caráter como no ensinamento.

A melhor defesa contra estes enganadores é amar o Senhor supremamente e apreciar sua palavra. Aqueles que estão sinceramente procurando o caminho apertado e a porta estreita não serão arrastados por estes hipócritas egoístas.


47. O Caráter dos Falsos Mestres

Os falsos profetas são, por último, não simplesmente errados em seu ensinamento, mas também em seus corações. A desonestidade com a mensagem do evangelho vai criar a desonestidade na vida. As forças interiores que produzem a mensagem desviada, a princípio (orgulho da vida, temor dos homens, amor ao dinheiro, concupiscência da carne, etc.) inevitavelmente se manifestarão no comportamento, ainda que sutilmente. Esta é a razão pela qual a advertência de Jesus sobre os falsos profetas leva tão naturalmente a uma discussão para testá-los pelo seu caráter, bem como pela sua mensagem. Os supostos profetas têm que ser provados, primeiro, ao nível de seu ensinamento. O que eles têm a dizer deverá ser comparado com o evangelho proclamado "desde o começo" (1 João 1:1-3; 2:18-24; 4:1-3; Gálatas 1:6-8) e, quando o seu ensinamento não for igual ao evangelho, o ensinamento deve ser rejeitado (2 João 9-10). Do ponto de vista de nossos próprios tempos, todos os professores que chegam proclamando nova revelação divina deverão, em vista do fato que a divulgação da vontade de Deus em Cristso foi completada há muito tempo (João 16:12-13; 2 Timóteo 3:16-17; 2 Pedro 1:3; Judas 3) e a conseqüente terminação do ofício profético (1 Coríntios 13:8), ser rejeitados completamente. Mas, finalmente, o fruto da árvore corrupta será produzido e sua natureza revelada. Os falsos mestres não podem ser bons homens. O ímpio pode, às vezes, pregar um puro evangelho, mas os falsos mestres são incapazes de viverem vidas verdadeiramente piedosas.

A analogia de Jesus referente à natureza: a árvore é conhecida pelos seus frutos, frisa o ponto que a cidadania do reino não é matéria de aparência, mas de existência. As pessoas, como as árvores, produzem o tipo de fruto que sua natureza exige. Portanto, ser um cristão não é simplesmente questão de fazer alguma coisa nova, mas de ser algo novo. É o tipo de vida que começa no coração, no centro da personalidade. Esta é a razão por que só é produzida por um novo nascimento (João 3:3-5). Alguns têm tentado seguir a Cristo acrescentando alguma nova dimensão a suas vidas, quando é a vida em si mesma que tem que ser mudada. Pode-se atar uvas aos espinhos e figos aos cardos, mas eles não crescerão ali. Um lobo pode vestir-se de lã, porém não pode produzi-la. O verdadeiro filho do reino é diferente. Como Jesus disse, "do seu interior fluirão rios de água viva" (João 7:38). O pecado, em todas as suas manifestações, começa no coração (Mateus 15:19) e é, conseqüentemente, no coração e do coração que um novo tipo de fruto tem que ser produzido.

É por causa da natureza interior da verdadeira piedade que a examinação dos mestres e discípulos em geral tem sempre que ser uma procura debaixo da pele. Há uma justiça e uma piedade que surgem, não de uma humilde fé no Filho de Deus, mas de um orgulho e do desejo de excelência moral e espiritual. A sutil, porém indisfarçável, falha desse tipo de "espiritualidade" é a total ausência nela de qualidades das bem-aventuranças: a mansidão, a compaixão e a auto-negação, a piedosa tristeza pelo pecado. Haverá também, sobre esta atraente pátina religiosa, uma incapacidade para produzir o fruto do Espírito: "amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio" (Gálatas 5:22-23).

É por esta mesma razão que João, lutando em suas epístolas com os mestres gnósticos que ameaçavam, com suas perversões, dominar as igrejas, insiste não só num exame doutrinário dos professores, mas num exame ético. Como muitos movimentos religiosos que apareceram desde então, o gnosticismo floresceu porque ele pegou o espírito da época, que era reivindicar uma profunda espiritualidade que transcendia todas as questões morais e éticas. Os mestres gnósticos ofereciam um novo e aperfeiçoado evangelho, que não sofria o desprezo do mundo em geral e dava liberdade das agonizantes questões da justiça prática. Seu sucesso aconteceu quando abalaram a confiança dos santos fiéis, tanto no evangelho como em sua própria salvação. Em resposta, João fala francamente: "Aquele que diz: Eu o conheço, e não guarda os seus mandamentos, é mentiroso" (1 João 2:4); "Aquele que diz estar na luz e odeia a seu irmão, até agora está nas trevas" (2:9); "Nisto são manifestos os filhos de Deus e os filhos do diabo: todo aquele que não pratica justiça, não procede de Deus, também aquele que não ama a seu irmão. Porque a mensagem que ouvistes desde o princípio é esta . . ." (3:10-11). Mas, quanto à grande popularidade destes pregadores e de sua mensagem? Isto não mostra que eles são verdadeiros profetas? João, de novo, responde claramente: "Eles procedem do mundo; por essa razão falam da parte do mundo, e o mundo os ouve" (4:5).

Os cristãos precisam orar pelo discernimento, pela sabedoria e pela fé para não serem enganados pelos falsos mestres, que cobrem seu erro com uma piedade aparente, mas superficial. Eles precisam, também, procurar a libertação da mentalidade do "sucesso", que vê cada avanço carnal como testemunho da verdade de sua mensagem, enquanto os mandamentos de Deus são abandonados, tanto na pregação como na vida. Para os discípulos que lutam laboriosamente com um mundo antagônico e os ímpios desejos que aparecem até mesmo dentro de suas próprias personalidades, tais profetas de um "novo evangelho" sempre terão um apelo poderoso, mas o apelo é da escuridão, não da luz. "Acautelai-vos dos falsos profetas". "Pelos seus frutos os conhecereis".


48. O Que é o Reino de Deus

"Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus" (Mateus 7:21). Como é evidente por esta contundente advertência, o discipulado superficial não é invenção do século vinte. Jesus estava atormentado por ela desde o início de sua pregação pública (João 2:23-24). As fileiras dos entusiásticos, mas insensatos "fãs", pareciam crescer juntas com sua popularidade inicial, e ele estava constantemente preocupado em sacudi-los para terem consciência sóbria do que significava segui-lo (Lucas 14:25-35). Entretanto, estes mesmos eram os naturais herdeiros dos fariseus, e dos insensatos ritualistas que, séculos antes, tinham feito nascer a apaixonada e, freqüentemente, fulminante repreensão dos profetas do Velho Testamento (Isaías 1:11-17; Amós 5:21-24).

Com linguagem que se tornou ainda mais penetrantemente franca, Jesus se volta dos falsos profetas para os falsos seguidores e seus falsos padrões. É perigoso para um homem tomar a estrada larga que vai para destruição, de propósito, mas é infinitamente mais perigoso tomá-la, crendo que é o caminho para vida. Gritos entusiásticos de "Senhor, Senhor" podem ser nada mais do que um conveniente bocado de lã para encobrir um coração obstinado. Pode nem haver um lobo debaixo desse pelego, mas ali há certamente um bode! Profissões vazias são tão perigosas para a estrada estreita como os falsos profetas.

Não há nada de mau quanto a uma sincera confissão de fé no Filho de Deus e o reconhecimento aberto que ele é o Senhor. Na verdade, não pode haver verdadeiro discipulado sem esta confissão (Mateus 10:32-33; Romanos 10:9-10). Mas a tragédia se instala quando isto é tudo que existe, uma declaração verbal da soberania de Jesus, sem qualquer evidência de submissão (Lucas 6:46).

Quem são estes ousados confessores? Eles não são hipócritas conscientes, pois Jesus diz que eles não entenderão a rejeição deles no juízo final (7:22). Eles não são preguiçosos imprestáveis, porque Jesus não disputa sua proclamação de zelosa atividade em seu nome. Seu problema é simples. Em todo o seu dizer e fazer, eles não tinham feito aquilo que ele esperava deles e que era fazer a vontade de seu Pai.

Neste ponto, os que aspiram a trilhar a estrada estreita têm que ser muito claros. No reino de Deus, nada será recebido como substituto para a obediência! Certamente não a mera confissão oral. Absolutamente não a diligente prática de ordenações religiosas que se originam no homem antes que em Deus (Marcos 7:1-8). Não, nem mesmo a fiel observância de certos seletos mandamentos de Deus, enquanto outros estão sendo estudiosamente negligenciados ou desobedecidos (Mateus 23:23). E, por último, não será nem aceitação, quando um só de todos os mandamentos de Deus está sendo teimosamente recusado, ignorado ou pervertido (Marcos 10:17-22; Tiago 2:8-11).

Isto não tem nada a ver com a justificação pelas obras. Tem a ver com a sincera fé, lealdade indivisa e absoluta confiança. Haverá sempre misericórdia do Senhor para aqueles cujo coração está totalmente decidido a agradá-lo em todas as coisas, pois eles estarão sempre querendo aprender mais, buscar o perdão, e fazer melhor. Mas para o homem que seleciona e escolhe o seu caminho através da vontade divina, nem toda a zelosa atividade religiosa que possa ser montada será suficiente para cobrir o fracasso.

"Muitos, naquele dia, hão de dizer-me: Senhor, Senhor! porventura não temos nós profetizado em teu nome, e em teu nome não expelimos demônios, e em teu nome não fizemos muitos milagres?" (Mateus 7:22). O fato que estes desobedientes confessores fazem a proclamação não contestada, que não somente ter possuído, mas ter exercido, dons miraculosos pelo poder de Cristo sugere que eles eram discípulos. Muitos sentiram que proclamações deles tinham que ser falsas, mas não necessariamente.

Quaisquer que fossem seus imensos fracassos como homem, Balaão certamente profetizou pelo poder de Deus (Números 22:35; 23:16). Não pode haver muita dúvida de que Judas Iscariotes, como um dos doze, empregou poderes miraculosos (Mateus 10:1). Os discípulos carnais de Corinto certamente o fizeram (1 Coríntios 1:4-7; 3:1-3). Dons espirituais jamais foram uma garantia da espiritualidade ou da divina aceitação do mestre; somente de que a mensagem era verdadeira.

Assim nós, também, podemos pregar o verdadeiro evangelho a muitas pessoas e fazer "muitos milagres," mas afinal sermos rejeitados simplesmente porque não obedecemos ao Senhor (1 Coríntios 9:27; 13:1-3; Filipenses 1:15-17). Estes professores, que se iludem a si mesmos, estavam fazendo a pergunta errada. O grande trabalho que Deus tinha feito por meio deles não serviu para ganhar a salvação; se eles tivessem verdadeiramente servido e agradado o Senhor, isso sim, ganharia a salvação (Lucas 10:20).


49. A Humilhação Final

"Então lhes direi explicitamente: Nunca vos conheci. Apartai-vos de mim os que praticais a iniqüidade" (Mateus 7:23). A cena que Jesus descreve com estas palavras finais sombrias é a de um grupo de entusiastas que usaram seu nome livremente e fizeram muito alvoroço sobre seus laços íntimos com ele. Pelo modo ardente e reverente com que eles devem ter falado do Filho de Deus, os observadores os haveriam, sem dúvida, julgado como estando entre seus mais devotos discípulos. Ali, certamente, deve ter havido freqüentes e ferventes declarações de que eles conheciam o Senhor. Isto era o talismã espiritual deles, o encanto que lhes deu segurança.

E foi justo neste exato ponto em que eles estavam mais orgulhosos, e numa hora e local quando seria mais desesperadamente devastante, que Jesus promete fazer sua profissão. Na presença de toda a humanidade em assembléia, incluindo cada pessoa que jamais o havia ouvido proclamar que ele era deles, ele haveria de dizer, "Nunca vos conheci . . ."! A absoluta humilhação de tal momento, para tal povo haveria de ser quase indescritível.

Em Lucas, o Senhor pinta um quadro similar de homens chorando por reconhecimento no juízo final (13:22-30). Mas ali é para aqueles cujo medo da "porta estreita" lhes tira a vontade de até dizer "Senhor, Senhor", quanto mais fazer sua vontade. A base de sua reivindicação não é que eles o tenham reconhecido como um Mestre, ou lhe prestado serviço, mas que eles tinham sido socialmente conhecidos. Ele tinha ensinado em suas ruas e comido à mesa deles. Aqui está um quadro ainda mais surpreendente do que aquele dos ousados professores, pessoas que durante a vida inteira haviam rejeitado o Filho de Deus e, entretanto, ainda estavam esperando, e até mesmo acreditando, que ele não haveria de rejeitá-los. Isto dá novas dimensões à capacidade dos humanos para enganarem-se a si mesmos. Espantoso como possa parecer, há multidões de homens e mulheres, hoje em dia, que sentem que seu repúdio do Santo de Deus foi cumprido com tal cortesia e civilidade que isso não lhes custará nada na eternidade.

Em Mateus, diferente de Lucas, Jesus está tratando com aqueles que se consideram seus discípulos. O fato que o Senhor lhes diz "Nunca vos conheci" não significa, necessariamente, que eles jamais tinham sido autênticos, mas que através do tempo em que eles estiveram executando seus ostentosos "milagres" em seu nome, sua desobediência tinha-os feito estranhos para ele. Por fim, apesar de todas as declarações deles e dos fervorosos trabalhos, eles não estavam em melhor situação do que aqueles que, claramente, haviam rejeitado o Filho de Deus.

Jesus não trata com mansidão estes reivindicantes que tentaram trocar submissão por zelo. "Os que praticais a iniqüidade", ele os chama, como se para acordar seus ouvintes imediatos para o fato que, ainda que sutil, este tipo de rebelião encoberta de piedade é séria e sua condenação justa. A mesma palavra aqui traduzida como iniqüidade (grego anomia) é usada de novo por Mateus, registrando a última e forte repreensão do Senhor aos fariseus. Como túmulos caiados, eles tinham uma aparência de justiça, mas eram por dentro "cheios de hipocrisia e de iniqüidade" (23:27-28). João a emprega para descrever a verdadeira natureza e caráter do pecado: "transgressão" ou "injustiça" (1 João 3:4).

Mas se estes falsos discípulos são transgressores, eles não estão necessariamente negando que Deus tem uma lei. Para eles é questão, em algum ponto, de, recusar conscientemente a submeter-se à vontade de Deus. Eles não são pessoas que pecam por inadvertência ou fraqueza, mas por desígnio. Aqueles que pecam por fraqueza não praticam uma susposta piedade, mas a humildade e o arrependimento. Eles sabem muito bem o que o pecado custa e não querem nada dele. Jesus contrapõe os feitos destes impostores contra os daqueles que fazem "a vontade de meu Pai".

Como já foi notado, o cenário desta conversação prospectiva é o do julgamento final, onde os destinos definitivos estão sendo decididos. O "apartai-vos de mim, os que praticais a iniqüidade", de cortar o coração, pode fazer o quadro de Gênesis, de Deus expulsando suas criaturas rebeldes do Éden, parecer quase brilhante. Houve um remédio para aquela tragédia. Para esta outra, não há nenhum. O pecado é sempre uma força separativa, operando alienação da própria pessoa e dos outros, mas o extremo horror do pecado é o expulsão sem recurso da própria presença de Deus. Com que dificuldade lutamos para imaginar como seria jamais olhar a face do amor, bondade ou pureza, jamais, tanto em sua divina fonte como refletida nos homens que foram tocados por elas. Mais de um ano mais tarde, e usando uma linguagem similar, Jesus descreverá a experiência de ser lançado ao "fogo eterno" (Mateus 25:41). Que nenhum de nós jamais possa aprender como a realidade desse momento ultrapassa estas palavras.


50. O Perigo do Engano de Si Mesmo

Já falamos brevemente sobre o sério engano de si mesmo, necessário a levar os homens e mulheres religiosos indisporem-se com o Filho de Deus, até mesmo quando ele se senta em seu trono de julgamento. Mateus 7:21-23 não descreve pessoas que estão fazendo um jogo consciente. A presença de Deus em sua glória teria a tendência para tirar o apetite de um homem pela presunção. O que estes versículos revelam é a capacidade de um ser humano para ocultar de si mesmo seus próprios motivos e escolhas. A questão importante que eles levantam é: como entramos em tal estado de engano de nós mesmos e como podemos evitá-lo?

A revelação nestes versículos, de que o dia do julgamento será um dia de surpresas, não é pouco assustadora. Não saberão os homens, no âmago dos seus corações, que não têm sido fiéis ao Senhor? Como não puderam eles perceber sua desobediência? Eles não foram pessoas ignorantes, estranhas ao evangelho do reino. Como eles puderam não saber? A resposta: o engano de si mesmo.

O engano de si mesmo é baseado na justificação de si mesmo, o uso do padrão errado pelo qual julgar-se (Lucas 16:15; 18:9-17), ou o simples fracasso na utilização do padrão verdadeiro (a palavra de Deus).

A seriedade da ameaça que isso representa para os que buscam o reino de Deus é evidenciada pelo número de advertências contra ele. Paulo diz que os homens enganam-se a si mesmos quando pensam serem sábios ou imaginam serem alguma coisa, quando não são nada (1 Coríntios 3:18; Gálatas 6:3). Orgulho e vaidade podem levar uma pessoa a acreditar em mentiras sobre si mesma, que ela própria contou. Tiago, em seu modo muito direto, adverte que é uma pessoa enganada por si mesma quem pensa que terá mérito só por ouvir a palavra de Deus, que ela nunca pratica, e ilustra seu ponto com o homem que se considera muito devoto, enquanto não exerce nenhum domínio sobre sua língua (1:22,26). Muita freqüência na igreja pode dar falsa segurança àqueles que preferem falar sobre religião verdadeira em vez de vivê-la. Pregar sólida doutrina não faz, necessariamente, uma pessoa piedosa. Finalmente, João admoesta que quando negamos que haja qualquer pecado em nossas vidas, estamos mentindo a nós mesmos (1 João 1:8). A dor psíquica de confessar o fracasso nos leva freqüentemente a procurar cobertura para nossos pecados no ativismo religioso, em vez do arrependimento e confissão.

E por que os homens trabalham tão diligentemente para convencer não só aos outros, mas a si mesmo, desses mitos sobre seu relacionamento com Deus? Porque eles acham a verdade que Deus lhes disse totalmente sem atrativo e, determinados a rejeitá-la, não querem suportar a dor de viver com uma consciência constantemente dolorida e acusadora (2 Tessalonicenses 2:10-12; 1 Timóteo 4:1-2). Algo tem que ser encontrado para encher o vazio e justificar sua desobediência.

Uma visão distorcida da "justificação pela fé" tem sido um subterfúgio popular. Em síntese, esta abordagem afirma que Cristo não tem interesse em como se vive, mas somente em como se sente. Deste ponto de vista, uma cuidadosa preocupação com a obediência aos mandamentos de Deus é vista como uma negação da graça de Deus e uma rejeição do evangelho. Às vezes, é quase o eco do espírito libertino que Paulo condena em Romanos 6:1-2: "Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante?" Quanto mais os proponentes desta idéia são reprovados por sua transgressão da vontade divina, mais eles declaram sua confiança na graça de Deus e no poder de sua fé. Mas isto não é fé em Deus, "mas fé na fé", um "fé-ismo" para servir a si mesmo. Certamente que somos justificados pela fé, mas uma fé que se manifesta pela obediência aos mandamentos de Deus (Lucas 6:46; João 14:15,21,23; 15:10,14; Gálatas 5:6; Tiago 2:14-26). Esta é, claramente, a mensagem do Sermão da Montanha.

Outro freqüente disfarce para a desobediência é "o fim justifica os meios." Que diferença faz o modo como foi feito, é o argumento, desde que o resultado positivo é conseguido. Esta pode ter sido a lógica de Davi, quando mudou a arca da Aliança para Jerusalém. O fim era bom, mas o meio foi rejeitado dramaticamente (1 Crônicas 13:1-14; 15:1-15). Foi certamente o pensamento de Saul, quando ele desobedeceu a Deus, na matança dos amalequitas. Poupar os melhores animais (uma transgressão) foi justificado como um meio de adorar a Deus (1 Samuel 15:15). Deus não se impressionou (15:22-23). Se há um ponto claramente afirmado no Sermão da Montanha, e há muitos, é que no reino do céu meios e fins são o mesmo. Meios divinamente escolhidos são adequados a fins divinamente escolhidos. Meios errados subvertem fins certos. A desobediência nunca pode produzir o coração submisso e confiante que nosso Senhor tanto deseja.

Mas, como poderemos escapar desta tendência humana pelo engano de si mesmo? Aproximando-nos das Escrituras com nossos corações dados a Deus e não com um interesse acadêmico ou institucional. Temos que enfrentar o que o Filho de Deus realmente disse, não importa que isso seja custoso, ou penoso, ou fora de moda. E então, à clara luz do ensinamento de Deus, temos que nos engajar constantemente no mais sincero sondar dos nossos próprios corações (2 Coríntios 13:5). Sem exame próprio, o engano de si mesmo é inevitável. Temos que perguntar-nos não somente se o que estamos fazendo está de acordo com a vontade de Deus, mas se o estamos fazendo pelo amor de seu Filho. Muito do que é feito "em nome de Cristo" é executado para a glória dos homens. Como é imperativo a nós o espírito de Davi: "Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração: prova-me e conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau, e guia-me pelo caminho eterno" (Salmo 139:23-24).


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